Lisboa, Paris, Bruxelas, Amesterdão/Delft, Berlim, Praga, Ljubljana, Zagreb, Zadar, Split, Mostar, Dubrovnik, Budva, Podgorica, Belgrado, Sófia, Istambul. Avião para Londres, duas noites, avião para Lisboa. Lista de todas as terras por onde passei na viagem – julgo não falhar nada. (Não escrevo ‘conheci’; ninguém, nem mesmo eu, tem desplante suficiente para escrever que ‘conheceu’ tanto sítio em tão pouco tempo – cá preciso de tempo imenso para ‘conhecer’ seja o que for.) Foram vinte e tal dias, comboio sem cessar – excepção no carro alugado em Zagreb para fazer a costa croata e que serviu para ir a Mostar, Bósnia. Quilómetros a mais, noites sem dormir nada nadinha de nada. Perdi a noção do tempo algures. Falhou-se a ida a Trieste e a Sarajevo. Falhou o desejo (estranhamente sério) do Miguel de passar pelo Kosovo. (Foi o metódico Miguel o motor da coisa, sempre.) Budapeste teima em escapar-me. Não me conhecesse tão bem e dizia que uma viagem assim, vivida como foi, te marca e te muda. À superfície mudas um pouco, talvez; cá bem fundo desconfio que nada. Tenho cem episódios por contar a quem pergunta que esbarram num discurso intimamente desorganizado. Como te apaixonas a seco em e por Berlim (o ‘em’ é exagero efémero; o ‘por’ de exagero não tem nada: zona de Kreuzberg – Oranienstrasse –, Tacheles, a noite e as mais maravilhosas insónias que jamais experimentei, Alexanderplatz, o rio Spree). As gentes de Mostar, simpáticas até ao osso, que te dão abrigo de madrugada e te oferecem de beber. Stari Most; os estilhaços nos prédios. Um edifício em Belgrado – antigo ministério da defesa sérvia – bombardeado pela NATO. Um Igor apátrida – um tipo andrajoso, fétido, tiritante, culto até mais não –; ‘medronho’, disse no compartimento do comboio até Belgrado, atirando a primeira palavra bizarra portuguesa que lhe passou pela cabeça. Ainda Belgrado: cartazes anti e pró Karadzic. A bebedeira para além de todas as medidas em Zadar. Outro Igor: um português de Loures a fazer voluntariado em Ancara enquanto sonha em ser escritor. E como acabas uma noite num festival de música em Budva, Montenegro, com Goran Bregovic, quando horas antes atravessavas a pé a fronteira Croácia/Montenegro às cegas, já noite escura como breu, sem um ruído, sem se ver vivalma. Enfim, eu nunca fui nada disto, confunde-me, sou amodorrado rapaz da cidade. Bregovic, que àquela hora e depois do impensável, te soa a música das esferas – e a Kalasnjikov e a Mesecina podem bem servir de banda sonora da viagem (de conjunto com o amigo Dylan, que, estou capaz de garantir, é possível de ser ouvido em qualquer ermo deste mundo). Há mais: a ex-Jugoslávia é território mui propenso ao irreal. E houve espaço para o arrependimento extemporâneo por não ficar tempo mais em Berlim e encontrar-me com eles depois em algum lugar. A estação de comboios de Podgorica é horrorosamente desagradável, desolação impenetrável. Ljubljana é a nova Praga (isto é uma tentativa de elogio que num dia bom sou rapaz para explicar). Tenho, notei, dois ou três tiques detestáveis que facilmente identifiquei como pertença do meu pai – não consegui parar de matutar nisto. À laia de desculpa de não querer ser vulgar com Istambul calo-me já de seguida. Istambul = mente agitada. Sopro quente, calor, humidade, humidade, calor, suor, e não me restaram muitas t-shirts para vestir mas ganhei dois Ray-Ban de mau gosto a 15 liras turcas cada. Passei, é fácil de ver, do orçamento planeado em muito muito. O divertimento em viagem é coisa dispendiosa. Os prazeres gratuitos são escassos.
Não me levem a mal, Lisboa deprime-me à brava por esta altura do ano. Cá chegado e noite mal dormida, meteram-me num carro e parei na terra do meu velho. Estendido sobre a cama, dormi umas vinte horas de enfiada e folheei três jornais antigos e li que o Isaac Hayes morreu.
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