quarta-feira, 2 de abril de 2008

A paixão

32

― Que estás a fazer? ― pergunta Anna.
― Estou a ver uma fotografia.
― Espero que não seja de alguma antiga namorada.
― Não, porque foste pensar isso? ― respondo.
― Em que estás a pensar? ―, pergunta Anna, da mesa da cozinha e do trabalho que avançava a passo largo.
― Estou a pensar no cancro e é uma coisa que me assusta ―, respondo dizendo a verdade, enquanto pressiono as pálpebras com as pontas dos dedos. Faz-se um estranho silêncio da outra sala.
― E tu, em que pensas? ― pergunto, por mera cortesia.
― Não estou a pensar em nada, estou a pensar nas mentiras ― responde Anna secamente.
― Que mentiras? ― pergunto. Ela não responde, só suspira.
Agora levanta-se da mesa da cozinha e arruma os papéis. Depois abre a porta da despensa. Tira uma grande tigela cheia de leite. Quer dar-me um copo de leite. Fico a ver a falta de jeito dela. Volta-se para o interior da sala e tenta fechar a porta da despensa com o cotovelo, o leite entorna-se, ela olha para mim como a pedir ajuda, mas eu finjo que não vejo. Dá um passo, coxeando. Derrama mais leite. Tenta compensar o movimento inclinando a tigela para a frente. Outro passo e cresce a mancha branca no chão. Andreas, diz ela desesperada, deixando cair a tijela que se parte, o leite esparrinha em todas as direcções. Ela estende as mãos, na cara uma expressão insuportável de súplica. Abraço-a.
Abraçarmo-nos assim tornara-se a nossa frágil protecção contra o mundo exterior, contra os nossos próprios momentos de desintegração e horror. Não havia alívio nas palavras, que há muito tempo se tinham esmagado pelo mau uso. Mas abraçarmo-nos assim com força ainda era uma salvação. Nunca fez desaparecer a solidão interior, mas acalmava o coração assustado e interrompia uns instantes a sensação de uma catástrofe inevitável. Dava-nos tempo para ganhar ânimo e esquecer o que realmente acontecia à nossa volta. O que no fundo acontecia connosco.

Ingmar Bergman, A paixão
Tradução do original sueco de Inga Gullander
Revisão de Luísa Costa Gomes
FICÇÕES de filmes (Julho de 2005)

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«I always contradict myself»

Richard Burton em Bitter Victory, de Nicholas Ray.