Há um poema de Rui Pires Cabral que termina assim: "Por uma vez, que valha a pena morrer." A minha incapacidade para recordar mais do poema de uma forma mais precisa é desanimadora. (Tenho procurado o livro aqui por casa mas não dou com ele; depois o encontro, depois aqui coloco o devido poema.) Quando voltei de viagem contaram-me sobre Newman, sobre as semanas de vida que lhe restavam, sobre a alta que pediu e o querer morrer em casa. E lembrei-me da frase do poema: "Por uma vez, que valha a pena morrer."
É raro não teres um actor favorito. Mais raro será se te julgas cinéfilo ou aferrado na coisa. De verdade que nunca tive resposta pronta para o tema (nem resposta pronta para o tema 'actriz favorita', dá igual*). Mas respondia, a ferros, Paul Newman.
Há Brando e Dean; Cary Grant e Stewart; Fonda e Bogart; Widmark que morreu faz pouco; há Montgomery Clift; Pacino e De Niro; o Redford com quem Newman fez rica dupla. Tudo gente evidente que dói. Os de agora que prezo: Norton e Seymour Hoffman e Depp. Os franceses: Belmondo; o Delon solitário e mudo dos filmes do Melville; o Léaud caprichoso do Truffaut. Ou Richard Burton e William Holden. Ou Mitchum ou Mitchum. Ou Christopher Walken ou Christopher Walken. E faltará aqui sempre alguém.
Mais do que actores, toda esta gente fez parte do meu imaginário de muito puto ou adolescente ou (vem aí repelente expressão:) 'jovem adulto'. À margem deste colectivo imenso, na minha memória sempre correu e sobressaiu Newman.
Convém explicar por esta altura que isto não é um obituário. Não escrevo ou escreverei sobre as características de Newman actor, de Newman piloto, de Newman activista político ou do seu sólido-como-tudo-casamento com Joanne Woodward. Podia tentar fazê-lo, mas era coisa para me arrepender: 1) a falta de talento para tal impera, 2) há quem já o tenha feito estupendamente bem. Aqui só se tenta explicar de onde deriva o meu fascínio por Newman.
Não há como negar: se hoje sou capaz de apontar Newman como meu actor de eleição, muito será pelas semelhanças físicas com mi padre (e só deixei de associar os dois nesta última década e picos de Newman - e por estes dias, o meu bom velhote recorda-me um tipo argentino, actor também ele, Federico Luppi). Eu funciono assim, com esta ligeireza no pensar: Newman era o meu pai, o meu pai era Newman; um e o outro sempre se confundiram por estas bandas.
O meu Newman de puto está em "A Cor do Dinheiro", de Scorsese, um Newman de meia idade como o meu pai então era, de olho azul, bigode, cabelo grisalho. Elegante. O meu Newman de hoje estará em "The Hustler / A Vida é um Jogo", de Robert Rossen.
Seguem-se na lista "Hud", de Martin Ritt, e "O Veredicto", de Lumet. Este último revi há poucos dias - agrada-me aquela personagem atípica em Newman: nada controlado, pouco 'cool'; todo ele sempre à beirinha da ruína (e cá fico com pena de Newman não ter feito muitos mais papéis destes, de 'alma frágil'). Amo muito aquela cena final do filme: não o prodigioso discurso em tribunal (escrita de Mamet, está visto), mas aquele minuto último, aqueles segundos últimos, o toque sem cessar do telefonema de Rampling que Newman não atende: o remorso (?) dela, o orgulho dele. Gosto daquilo - atinge-me no sítio certo.
E tenho "Torn Courtain" em óptima estima, prazer cá meu que me obrigo a rever uma vez por ano. Outro que tenho em alta estima e paradigma do bom envelhecimento de Newman: "Nobody's Fool", de Benton, filme que vi numa cadeira da faculdade.
Faltar-me-á ver "Hombre" e "The Left Handed Gun". Faltar-me-á rever muito da década de 70 e os Tennessee Williams que vi quando criança e pouco recordo...
Chega por hoje. Tenho os horários trocados, a mente entorpecida. Que isto fique escrito apressada e atrapalhadamente sobre Newman e bastará.
* é mentira descarada: Gene Tierney (e não por fazer lembrar a minha figura materna).
** tipo espirituoso, além do mais: "Newman, o crítico sucinto".
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