"(...) Pois o cinema de Béla Tarr joga também com um formidável poder hipnótico, do qual a duração é elemento essencial mas não único. A música (as canções tristes e populares da Hungria que acompanham e habitam inúmeros planos) tem um importante contributo, e de certa forma reivindica-se, com provocação, como facilidade, instrumento de sedução, poder enfeitiçante. A música faz um trabalho de passador, introduz-nos numa outra dimensão que não pretende descrever o real mas oferecer estados de consciência, sensações metafísicas: o que é estar sobre-presente no mundo, por exemplo? O que é a sensação pura do tempo? Se quisermos, haveria aí um ponto comum com o DEAD MAN de Jim Jarmusch. Nos dois casos a música participa num regime cinematográfico particular, deixa de ser mero contraponto narrativo para procurar atingir as portas da percepção.
Mas Béla Tarr também utiliza com certa habilidade a confusão dos elementos, produzindo mais uma vez um poderoso efeito de perturbação. Diz que "um filme não pode em caso nenhum ser identificado com uma simples história humana ou, mais exactamente, [é preciso colocar] esta história humana num sistema de relações (...) onde uma parede possa ter a mesma significação dramática que uma acção que se desenrola entre duas pessas". E na verdade a dialéctica do movimento e da imobilidade, do humano e do desumano, funciona em pleno; o que é aqui imóvel e petrificado são os homens que esperam, o quê ao certo?, enquanto a câmara, em lentos e elegantes movimentos, sobretudo em belíssimos travellings, não cessa de percorrer o mundo e de dar vida às pedras. Como num plano de "Perdição", por exemplo: um prédio deteriorado numa cidade perdida, a câmara percorre lentamente o rés-do-chão, a chuva cai com tanta força nas paredes que é evidente que não é chuva, antes uma mangueira para combater incêndios. Em cada entrada há um grupo de homens e de mulheres, apáticos, petrificados, olhando para coisa nenhuma. A chuva diluviana continua a cair, o mundo vai certamente afogar-se depressa, será possível que os homens assistam assim ao seu naufrágio, será possível que tenham renunciado a mexer-se? Sim, diz o filme, é possível. A metáfora religiosa é evidente. Deus abandonou o mundo, sem enviar nenhum Noé que salve os homens. Não há esperança, resta apenas esperar. Imóveis, ou então dançando. Porque a dança parece ser o último prazer do homem, Não serve para salvar nada, uma vez que o salão de baile de "Perdição" se chama Titanic Bar e que o tango é de Satanás. A dança não salva nada, mas pelo menos é uma ocupação, dura muito tempo, e como muitas vezes se mistura com álcool, é uma ocupação ainda melhor."
Stéphane Bouquet, Cahiers do Cinéma nº 510, Fevereiro de 1997
Tradução de Luís Miguel Oliveira
"Béla Tarr", Edição Cinemateca/Museu do Cinema, Setembro de 1997
(um livro encarnado vivo de vinte e poucas páginas comprado há coisa de um ano por 2 euros e 49 na Cinemateca; precioso, precioso)
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